18 julho 2009

Um Apólogo de Machado de Assis

Um Apólogo


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

03 julho 2009

Nem tanto quanto que particular

Estranho não! Mas esquisito? - Perguntou-se. E não é a mesma coisa? Ah, perguntas vem e vão. É aquela velha coisa sobre vontades, que "dá e passa"? Ora, se eu soubesse viver de deixar passar... prefiro nem... exagero. Mas o fato é que isso tem funcionado. Para ela.
Desceram a ladeira que os levava ainda mais para aquele precipício de fantasiosas ilusões e cordialidade. Cordialidade não recíproca, naquele momento.
Se lutava, pelo o que não sabia mais, as palavras saltavam de bolo por entre os lábios, inquietos de silêncio, anteriormente contínuo. Esse silêncio que outrora fora quebrado, mas infelizmente exposto como qualquer coisa. Como falar sobre o tempo, quando não se sabe do que falar.
Ora, ora! Que direito se tinha de não ser exposta? Que privilégio se teve por tanta sinceridade cuspida? Dias antigos. São dias antigos. Acabados! - Disse ela. Forçando-se a não folhear o livro melhor, o rancor continua pela capa falsa.
Como fazer de uma mentira, uma mentira dita? É um rio, um oceano de verdades deixado de lado. Focalizando cada vez mais na única mentira. Aquela que forço em convencê-la que é mentira. Pois isso é!
E isso foi depois do sol sair de trás da árvore. Depois de esperarem que ele fosse... Embora. Quando desceu, a racionalidade foi junto. Pela metade.
Sabe quando não se tem nada e cada vez mais nada? Não! Digamos, até se tem muita coisa... Mas onde diabos estariam? Notas altas num papel. Só se for! Água e pão para beber e comer. E nada afiado por perto. Pais vivos.
Mantinha-se próximo ao real, porém confundido entre fantasias. Como seria isso? Posso eu me dividir entre o feliz real e o triste fantasioso? É porque ao mesmo tempo o triste feliz fantasioso dói, sendo assim poderia dizer feliz? Ah, quantas perguntas idiotas. Idiotices, idiotices, idiotices. Acabou-se por tomar apego a essa estúpida palavra idiota: idiotices.
Ah, enquanto o sono não vinha era gostoso fantasiar sobre o futuro. Agora a gente reza para que o sono chegue logo, para ser privada disso e do sonho.

Débora Gil.